sexta-feira, 27 de maio de 2011

Senso de Humur (Lígia Fagundes Teles)


Na minha idade de ouro, costumava fazer – refazer – uma hierarquia de valores e nessa hierarquia a coragem ocupava o primeiro lugar. A virtude maior. Coragem de amar e desamar, coragem de morrer, coragem de cólera, da tristeza – ô Deus! – até nos enterros as pessoas tão contidas, tão exemplares. Se controlando para não chorar alto porque se o choro fica forte, já vem alguém com pílula, a injeção, o analista: fechar as portas, as janelas, os buracos. Até os anjinhos de Giotto de desesperam diante de Jesus crucificado, lá estão eles no céu, arrancando os cabelos, os olhos inundados de lágrimas. Mas o homem tem que ficar no nível, sem transbordar. Sem claudicar: claudico, claudicas, claudicavi, claudicatum, claudicare. A origem naquele imperador Cláudio, que mancava. Então se a gente dá uma mancada, já vem a terapia de apoio: pisar firme. Não chore, não tussa, não ria, isto é, ria discretamente porque senão o próximo já vem pegar no seu braço, ficou de porre? Não, não é isso, não, é que estou contente, com vontade de cantar, queria cantar, posso?

Medo de desafinar – ai! – que duro o julgamento desse próximo, medida de todas as coisas. Tão atento a nosso próximo. Atento e desatento: condena, absolve, aconselha, desaconselha e depois vai tomar chope, esquece. O objeto do julgamento – o réu – levando tudo tão a sério, fazendo e desfazendo. E o outro, como no poema, tirando ouro do nariz.

Neste sistema burguês, onde só tem importância a aparência, com todos defendendo ferozmente essa aparência, incluindo-se os neuróticos mais angustiados ainda porque reprimidos – dentro desse mecanismo, comecei a superestimar a coragem. Emocionada com o rei que antes do grito da criança, “mas ele está nu!”, espontaneamente se reconhece em sua nudez, exposto por inteiro, face e coração: aqui estou.

Mudei de pensar. Melhor ainda do que ter coragem é ter senso de humor, dom mais raro. E mais nítido. Há todo um leque de ambigüidade na conceituação do comportamento corajoso, é coragem cortar os pulsos? Se atirar de um vigésimo andar? E o soldado que acerta em cheio a bomba de napalm no vilarejo e recebe medalhas e tratamento de herói – esse é um bravo? Desertar pode indicar coragem. Também ficar.

No reconhecimento do humor não há equívoco. Ou existe ou não existe e seu portador sabe disso, o portador e os que estão ao redor. Tente fingir bom humor perto de uma criança. De um cachorro. Faça aquelas caras, a voz postiçamente mansa. O cachorro vem, fareja os fluidos, sente o peso da aura – uma barra – e vai saindo com o rabo entre as pernas. Bom humor é charme e as pessoas querem ser charmosas, os políticos em primeiro lugar, não é com vinagre que se apanha mosca. Mas se esmerando embora na representação, é difícil para o fingidor sustentar por muito tempo a máscara do bom humor, o mascarado se cansa e acaba de descobrindo.

Sense of humour. Mas o que vem a ser afinal esse senso de humor? Difícil a definição. Mas sabe-se o que ele não é: não é a graça irreverente das anedotas na boa tradição lusitana ou carioca, o repertório pornográfico do anedotário oral e escrito é delirante, incluídas as histórias em quadrinhos. Mas não se trata disso: nem piada obscena nem bem-comportada. O humor também não reside no humor negro do anedotário tragicômico. Não confundir ainda o senso de humor (que pode ser adquirido e, nesse caso, maior mérito) com o humorismo profissional de teatro ou televisão, o profissional ri e faz rir por ofício. Longe do público, fecha seu repertório, está descansando. E no descanso pode ser até um mal-humorado, um chato.

Em seu estado puro, o senso de humor não é negro nem vermelho nem azul mas tem as sete cores do arco-íris numa faixa só. Nem erótico nem puritano, não tem implicações de ordem ética mas estética, o bem-humorado é um esteta. Uma filosofia de vida? Digamos, uma doce filosofia que nos permite vislumbrar uma certa graça nas coisas desengraçadas. Sem sarcasmo, que o sarcasmo é cruel. Sarcasmo é veneno. E o senso de humor é que nos impede de virarmos uma esponja de fel, a casa pegou fogo? O louco bem-humorado dá uma volta em torno, tira o cigarro do bolso que não existe e acende o cachimbo numa brasa do fogão.